Dificuldade para traçar uma linha que separe o tráfico do uso de drogas, ausência dos efeitos desejados no modelo exclusivamente repressivo e o aumento da população carcerária foram alguns motivos citados pelo ministro do STF, Gilmar Mendes, para defender a descriminalização do uso de entorpecentes na conferência que teve como tema “O STF e a Lei de Drogas”. O ministro participou na sexta-feira (27/11) do III Encontro do Sistema de Justiça Criminal de Mato Grosso, realizado pelo Tribunal de Justiça, por meio da Escola Superior da Magistratura (Esmagis) e da Comissão sobre Drogas Ilícitas (CSDI).
A posição do ministro já é conhecida pelo voto proferido no Recurso Extraordinário (RE) 635659, que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343, mais conhecida como Lei de Drogas. Relator do recurso, o ministro votou pela inconstitucionalidade do artigo, que penaliza com advertência ou prestação e serviços à comunidade quem adquirir, transportar, guardar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal.
O julgamento do RE teve início em 2015 e até hoje não foi concluído, em razão de diversos pedidos de vista. Segundo o ministro, alguns colegas acompanharam o voto dele pela descriminalização apenas em relação à maconha, mas ele disse continuar convencido de que o assunto precisa ser discutido internamente, para se chegar a um consenso.
Um dos efeitos da criminalização do uso e posse de drogas é o aumento da população carcerária no Brasil, que de acordo com Gilmar Mendes ultrapassa 800 mil pessoas, sendo cerca de 350 mil de presos provisórios. O ministro também informou que pelo menos 30% dessa população carcerária está trancafiada em função do tráfico, muitos deles nessa fronteira movediça que separa o uso do tráfico.
“Se olharmos os casos criminais, boa parte é sobre isso. Então ficamos em dúvida. É tráfico ou não? É tráfico sistêmico ou privilegiado (quando, por exemplo, o réu é primário, tem bons antecedentes e não integra organização criminosa)?”. Além disso, o ministro destacou que o magistrado, ao optar pelo aprisionamento, pode estar colocando o réu em situação de refém de organizações criminosas, que dominam os presídios brasileiros. “Sem decidir pela descriminalização continuaremos mandado matéria-prima para essas organizações”, ressaltou.
O ministro também revelou casos quase caricatos que chegam ao Supremo sobre prisão por tráfico. Como um indivíduo condenado a uma pena de seis anos, nove meses e 20 dias de prisão, em regime fechado, pela posse de 1 grama de maconha. Ou outro processo que tentava caracterizar como hediondo o crime de tráfico privilegiado, apenas para justificar o regime fechado. Nesse caso, houve entendimento do colegiado que o tráfico privilegiado não se harmoniza com hediondez.
Para formar sua convicção sobre o assunto, o ministro disse ter pesquisado experiências positivas de outros países e citou como exemplo Portugal, que desde 2001 adotou a descriminalização do uso e posse de pequenas quantidades de drogas e se tornou um dos países mais seguros da Europa. Entretanto, o ministro ressaltou a importância de se discutir o assunto racionalmente e tendo a convicção de que nenhuma sociedade logrou êxito em eliminar o uso de droga no seu território. “Há apenas sociedades organizadas que conseguiram controlar os crimes e investir em prevenção”, concluiu.
Realidade em MT - Presidente da mesa, o desembargador Orlando Perri demonstrou, por meio de números, que a realidade em Mato Grosso não é diferente. Ele informou que o Estado tem uma população carcerária estimada em 11.500 presos, sendo que pelo menos 3.300 são faccionados, ou seja, fazem parte de alguma organização criminosa. “Os cabeças dessas organizações criminosas têm seus bankers nos presídios”, afirmou o desembargador.
Perri lembrou de uma operação realizada pela Secretaria de Segurança Pública na Penitenciária Central do Estado, a PCE, maior unidade prisional de MT. Antes de iniciar a operação, o presídio foi “silenciado” com um corte de energia. O objetivo era que os celulares fossem descarregados e os líderes das organizações criminosas que agem na PCE não pudessem se comunicar com seus comandados do lado de fora, evitando assim atos de vandalismo e depredações, como ocorridas em outros estados.
Naquela ação foram apreendidos 200 aparelhos de telefone celular, 500 chips e mais de 20 quilos de drogas. “É difícil encontrar uma boca de fumo em Cuiabá com a quantidade de drogas que havia no presídio”, comparou o desembargador, acrescentando que se o Estado quer controlar a criminalidade precisa antes dominar os presídios.
Para a juíza da Vara de Entorpecentes de Cuiabá, Renata do Carmo Evaristo Parreira, o magistrado de Primeira Instância também enfrenta dificuldades quando o assunto é tráfico de drogas. Ela citou como exemplo o caso de uma mulher que recebeu o benefício da prisão domiciliar e o rastreamento indicou que ela percorreu, em uma semana, 130 km dentro de Cuiabá, evidenciando que ela continuava traficando.
Contou ainda sobre a dificuldade de se estabelecer o que é tráfico e o que é uso e disse que os custodiados são preparados pelos líderes, pois chegam na audiência informando sobre jurisprudências e que a quantidade apreendida com eles configura uso e não tráfico. “Nós também ficamos perdidos com a avalanche de decisões que vêm de cima”, pontuou a juíza, uma das convidadas a compor a mesa. Também participou da mesa, como convidado, o delegado da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) de Cuiabá, Vitor Hugo Bruzulato Teixeira.