"Assim como eu, muitos médicos não pararam de trabalhar depois que ficaram doentes. Os pacientes precisam de nós."
"Mas estou com raiva por eles terem morrido. Não precisava ser assim."
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É com a voz trêmula que o padre Portillo, que trabalha como médico voluntário na cidade peruana de Iquitos, se lembra da morte de três colegas dos tempos de universidade que perderam a vida para a covid-19.
Eles estão entre os mais de 230 médicos mortos pela doença no país sul-americano.
Portillo conta à BBC que as condições de trabalho e segurança para as equipes de saúde no Peru se deterioraram tanto que a classe está organizando a terceira greve de médicos em apenas seis meses desde que a pandemia chegou ao país.
Quase 12 mil médicos infectados
Dados do Conselho Médico Peruano (CMP) mostram que quase 12 mil médicos foram infectados pelo coronavírus até o momento.
Associações e sindicatos denunciam que a situação foi agravada pela forma como o governo está gerindo a pandemia e também pelas más condições de trabalho, que vêm de antes do coronavírus, no setor público de saúde.
Na quarta-feira (13/01), médicos de todo o país anunciaram que suspenderiam seus trabalhos, exceto os emergenciais. Paralisações anteriores semelhantes, em agosto e outubro, duraram 48 horas.
"Nenhum médico se forma para fazer greve. Todos queremos tratar as pessoas, mas não conseguimos fazer isso adequadamente nas condições atuais", diz Juan Ramirez, clínico geral que organizou a paralisação na província de Loreto.
"Não se trata de ganhar mais dinheiro. Quando você precisa comprar seu próprio EPI (equipamento de proteção individual) e usar uma máscara descartável por mais de uma semana, vê que algo está realmente errado."
Os organizadores da paralisação garantem que os tratamentos de pessoas com covid-19 ou outras doenças, como tuberculose, câncer e HIV, não serão interrompidos.
Ramirez, que trabalha em uma unidade de emergência, se reveza entre piquetes e plantões noturnos atendendo pacientes com covid-19.
Ele também foi infectado e, como o padre Portillo, continuou trabalhando depois de se recuperar.
Embora o Peru tenha vivido paralisações como essas nas últimas décadas, a gravidade da atual pandemia torna as mais recentes particularmente emotivas e controversas.
'O vírus não entra em greve'
A greve foi criticada pela imprensa, pela população e por funcionários do governo — a ministra da Saúde, Pilar Mazzetti, reagiu à paralisação de outubro dizendo que "o vírus não entra em greve".
Mas os defensores dos protestos dizem que é a única forma de pressionar o governo, especialmente depois que os médicos concordaram em voltar ao trabalho após greves anteriores em troca de novas negociações das suas reivindicações, como o pagamento de um bônus aos trabalhadores na linha de frente e o compromisso de aumentar os investimentos em hospitais.
O neurocirurgião Ernesto Salazar, que afirma ter perdido 30 colegas durante a pandemia, incluindo ex-alunos de seu trabalho como professor universitário, acredita que a decisão da greve é eticamente justificável.
"É injusto e errado criticar a greve, principalmente quando, em mais de 40 anos de profissão, nunca vi médicos suspender os serviços de emergência", diz ele.
"Quem os critica parece ter esquecido disso. Os médicos estão morrendo porque estão trabalhando."
Os hospitais públicos peruanos têm um histórico de carência de financiamento, equipamentos e pessoal antes mesmo da pandemia, dizem os médicos.
A covid-19 certamente piorou as coisas.
O padre Portillo organizou uma campanha de crowdfunding ("vaquinha" online) no Facebook para comprar suprimentos para sua clínica e ajudou o principal hospital de Iquitos, à medida que problemas como a falta de tanques de oxigênio e antibióticos se acumulavam.
O clérigo não participa da greve — ele está atualmente no exterior — mas apoia o movimento.
"Não sou pago para fazer trabalhos médicos, mas é o sustento dos meus colegas. Alguns deles passaram meses sem receber o salário em dia", acrescenta.
Capacidade hospitalar no limite
No total, mais de 38 mil peruanos morreram e mais de um milhão foram infectados, apesar de um lockdown antecipado e rígido.
A pandemia levou a capacidade hospitalar ao limite: em 12 de janeiro, o Ministério da Saúde informou que os hospitais da capital Lima e da cidade vizinha Callao, que atendem a uma população de 10 milhões de habitantes, tinham apenas seis leitos de UTI com ventiladores disponíveis.
O Peru tem uma das maiores taxas de mortalidade por covid-19 por 100 mil habitantes do mundo — pior ainda do que países como os EUA e o vizinho Brasil, que lideram a lista global em total de mortes.
Em 13 de janeiro, o governo anunciou duas semanas de medidas rígidas que incluem um toque de recolher em todo o país, das 23h às 4h.
Um porta-voz do Ministério da Saúde disse à BBC que está em contato constante com os sindicatos para encontrar uma solução para suas reivindicações.
"Estamos trabalhando para resolver essa situação", afirmou.
No último comunicado divulgado em 29 de dezembro, a ministra Mazzetti prestou homenagem aos profissionais de saúde que morreram durante a pandemia.
"Até esta data, 949.391 pessoas receberam alta hospitalar. Isso foi possível graças aos profissionais de saúde", disse ela.
"Lamentamos a morte de médicos que não pouparam esforço, tempo e dedicação. E reconhecemos seu exemplo e compromisso."