Vinte anos após a entrada em vigor da Lei 10.216/01, a Reforma Psiquiátrica e toda a Reforma Sanitária passam pelos momentos de maiores riscos de retrocessos desde suas implementações. Em tempos de pandemia, quando o SUS está em processo de sucateamento, é muito importante não deixar passar em branco uma data tão importante como esta: 06 de abril de 2021, quando a Lei da Reforma Psiquiátrica completa vinte anos de vigência.
A chamada “Lei Paulo Delgado” criou mecanismos substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, manicomial, asilar e trouxe uma importante mudança do enfoque legal. Temos no artigo 4º da mesma o indicativo de que qualquer um de nós cidadãos brasileiros, antes de ser internado, tenha a possibilidade de ser tratado em serviços abertos, sem ter nossos direitos de ir e vir ceifados por um ato médico ou judicialmente compulsório.
Em oposição à ideia da alienação, do transtorno mental, da loucura associada a uma suposta periculosidade daqueles que sofriam de alguma patologia, cria-se ali um sistema em que a singularidade na atenção e tratamento do indivíduo, agora de base ambulatorial, no território, com respeito aos significantes de cada um, dão a tônica do porvir, embasados e inspirados em um movimento de redemocratização.
A Reforma Psiquiátrica, em verdade, é um processo. É mais que apenas uma lei. É um processo político, epistemológico, um processo social complexo. A Reforma é onde e quando o princípio da dignidade da pessoa humana foi realmente implementado na atenção às pessoas com os chamados transtornos mentais.
A criação dos Centros de Atenção Psicossocial, dos Serviços de Residência Terapêutica, dos ambulatórios de saúde mental, entre outros, mas principalmente com a ideia de fechamento dos manicômios e de tratamentos degradantes, como a eletroconvulsoterapia, mostram um direcionamento democrático que embasa os movimentos de reforma sanitária e psiquiátrica.
Atualmente, em tempos de pandemia, de negação da ciência, de obscurantismo religioso e científico, em um típico movimento de contrarreforma, mais do que nunca os princípios constitucionais e norteadores do SUS precisam ser reafirmados.
A defesa da democracia passa pela defesa daquilo que foi amplamente debatido por especialistas e duramente conquistado pela população nos anos 80: a saúde pública, o SUS, a Reforma Psiquiátrica. As publicações e evidências científicas do século XXI demonstram que quanto mais recluso e isolado o ser humano fica, menos capacidade de socialização ele terá. O tratamento em saúde mental deve ser necessariamente territorial, com ressocialização, rumo à inclusão da diferença, com a valorização da arte, com o esporte e a cultura como vieses de socialização e reconhecimento no laço social, em uma discussão sobre o que é bem-estar, que repudia o modelo iatrogênico, de medicalização da vida.
Neste momento de pandemia ficou evidente o quanto a necessidade de isolamento social traz efeitos maléficos à saúde mental por si mesmo, portanto, não pode ser considerado método de tratamento. Em um processo civilizatório que deveria caminhar para a melhoria de condições de vida coletiva, necessitamos rejeitar o retrocesso. Para isso é preciso resistência, persistência na defesa da saúde pública. A Constituição que garante que estejamos aqui nos expressando livremente determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Não é possível, portanto, coadunarmos com a lógica privatista que torna a saúde uma mercadoria quantificável. Relembrando Maiakovski: "Gente é pra brilhar".
CARLOS RUBENS DE F. OLIVEIRA FILHO é Promotor de Justiça e especialista em Direito Público, colaborador do Centro de Apoio Operacional da Defesa dos Direitos Humanos, Diversidade e Segurança Alimentar.
DRA. DANIELA SANTOS BEZERRA é psicóloga da Área Técnica de Saúde Mental da SES-MT, psicanalista membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise e do Coletivo Intercambiantes.