Se tem uma coisa boa que a humanidade conseguiu fazer em milhares de anos de existência, foi música. Além do calorzinho no coração que os ritmos e melodias são capazes de provocar em todo e qualquer momento, há letras tão gigantes que, depois, as próprias palavras parecem pequenas para destacar tal grandiosidade.
É o caso, por exemplo, de “Comportamento Geral”, cantada pelo mestre Gonzaguinha em 1973. Na obra, o poeta registra a falta de reação diante de um momento político de pura tensão, pois o país estava prestes a sofrer um golpe militar. O texto foi escrito de forma tão genial que, quase 50 anos depois, ainda revela uma população tão mal tratada que parece ter se acostado a perder e se resignar.
Se Gonzaguinha entendia que todos nós merecemos o que há de melhor nesse mundo, o artista provavelmente se desesperava ao notar o assustador ar de normalidade diante de situações tão duras.
Perceba a atualidade das frases: “você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado; você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo tem melhorado; você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado. Você merece, você merece! Tudo vai bem, tudo legal. Cerveja, samba e amanhã, seu Zé, se acabarem com o teu carnaval?”
Pois bem, acabou o carnaval, e tudo vai bem. O Big Brother Brasil está mobilizando muito mais do que a possibilidade de precarização ainda maior do pouco que ainda temos de Saúde e Educação, com a Proposta de Emenda Constitucional 186/19.
Superamos o trágico número de 250 mil mortos pela Covid-19, e as instituições absolutamente relapsas gastam seu tempo pensando em preservar parlamentares que pregam contra o mínimo que conseguimos assegurar de alguma coisa mais próxima do que chamamos democracia.
Milhares de pessoas continuam aguardando atendimento, famílias inteiras continuam desesperadas, e o governo federal não tem preocupação nenhuma com a vacina. Finge alguma para atender a pressões internacionais e de uma parte pequena da população organizada. O governo está preocupado mesmo em vender as empresas públicas a preço de banana, para enriquecer setores do Mercado e nos deixar mais pobres.
Não é só a pandemia, tudo isso representa o fim do nosso carnaval. O fim de momentos que tragam alegria, que permitam respirar. O fim de qualquer minuto de tranquilidade, de qualquer garantia de apoio. Menos festa, mais tristeza, menos folia, mais silêncio, menos amor, mais ódio.
Ao descrever o comportamento geral, Gonzaguinha não fez adivinhações, ele olhou a sua volta e leu uma sociedade que crê na numa ordem injusta e no progresso de poucos. Uma sociedade que defende padrões que não existem, que prefere acreditar no sabidamente impossível em vez de trabalhar pelos ideais de bem comum plenamente possíveis. Uma sociedade que não suporta discriminação e maldade em realite show, mas pouco se importa com as ofensas e injustiças praticadas contra ela mesma. O comportamento geral do brasileiro não parece mais resultado da desinformação, mas do desinteresse, da desistência.
Por isso a arte pode ser tão perigosa. Quando conectada com a realidade, é capaz de fazer pensar, refletir e agir. Afinal, disse Gonzaguinha, “você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre: muito obrigado. São palavras que ainda te deixam dizer por ser homem bem disciplinado. Deve, pois, só fazer pelo bem da nação tudo aquilo que for ordenado. Pra ganhar um fuscão no juízo final e diploma de bem-comportado”. Leia isso, olhe ao redor e responda honestamente: é isso que nós merecemos? É isso que você merece?
*Luana Soutos é jornalista e socióloga