Sem visitas de pessoas de fora, mercadorias higienizadas antes de entrar na aldeia, saídas só em casos de extrema necessidade, reforço na produção agrícola e uso de remédios da floresta. É assim que o povo Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, na cidade de Marechal Thaumaturgo, interior do Acre, se mantém isolado e sem nenhum caso de Covid-19 desde a confirmação dos primeiros casos da doença no Acre, em março deste ano.
O G1 entrou em contato com as coordenações dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas do Alto Rio Juruá e Purus (Dsei) que confirmaram que os moradores da Terra Indígena Kampa são os únicos sem casos de Covid-19 no estado.
É lá que mais de mil Ashanikas seguem um isolamento social criterioso para não ter contato com a doença que já vitimou vários indígenas em todo o país.
Dados da Comissão Pró-Índio (CPI-Acre) mostram que o novo coronavírus já atingiu mais de 2 mil indígenas, sendo 27 mortes pelo vírus. Treze povos indígenas foram infectados nos municípios do estado acreano.
Ao G1, um dos filhos do cacique e também líder indígena Francisco Piyãko explicou que a Terra Indígena Kampa tem 87 mil hectares e possui uma aldeia grande chamada Apiwtxa, com pouco mais de mil pessoas. Apiwtxa também é o nome da associação indígena da região.
A Terra Indígena Kampa do Rio Amônia concentra o maior número de ashaninkas do estado acreano. Há outras aldeias da etnia concentradas na cidade de Tarauacá e em Feijó, também no interior.
“Estamos trabalhando muito para isso, mas essa é uma situação que qualquer descuido chega na comunidade. Não é uma coisa que passou, principalmente agora que vemos que tem um crescimento muito grande e temos que ficar em alerta. Até agora, vamos completar um ano, não tivemos nenhum caso confirmado na comunidade. Mas, não é fácil manter. Não nos colocamos acima de nenhum outro grupo, mas procuramos fazer o que dá. Estamos segurando e, se Deus quiser, continuaremos assim”, afirmou Piyãko.
Estratégias
Para evitar que o coronavírus chegue até a aldeia, os líderes tomaram uma série de medidas de prevenção logo no início da pandemia. Uma comissão foi criada para levar e trazer de volta para a comunidades indígenas que precisam sacar benefícios como o Bolsa Família e auxílio emergencial ou resolver algum problema em alguma agência bancária.
Só é permitida a saída dessas pessoas da comunidade com autorização. Da comunidade, os indígenas são levados para Marechal Thaumaturgo, sacam os benefícios e voltam para comunidade. Não há circulação pela cidade ou visitas, apenas em casos de necessidade.
Se há algum problema bancário, os líderes escolhem um representante da família para ser levado até a cidade para resolver a situação. A visitas turísticas também foram canceladas na comunidade por enquanto.
“Há casos em que as pessoas não precisavam ir, reunimos grupos das famílias dentro de um acordo estratégico, levamos um ou dois representantes dentro da comissão até a cidade e depois de volta à comunidade para termos o abastecimento. Fizemos medidas voltadas a não circular na cidade e também cancelamos todas as viagens para fora da terra e também de pessoas que viriam para a terra. É muito interessante e funcionou até hoje”, garantiu Piyãko.
Protocolo de segurança
Essa comissão também fica responsável por comprar alimentos e utensílios de primeira necessidade na cidade. Após a compra, toda mercadoria é higienizada antes de entrar na aldeia. As pessoas também trocam de roupa e tomam banho antes.
“A gente tem uma cooperativa que tem uma estrutura muito grande. Todo o protocolo de segurança adotamos para que a mercadoria que vai para a aldeia seja higienizada e eu cuido disso, fica o estoque na comunidade”, destacou o líder.
Piyãko contou também que a comunidade se voltou para trabalhar nos roçados e plantações para garantir que não faltasse nenhum alimento básico na alimentação. Com isso, a aldeia conseguiu adquirir produções diversas de legumes, frutas e verduras.
“Fizemos o isolamento de fora da comunidade para dentro, lá dentro a vida segue normal. Trabalhamos muito, temos um resultado muito bom esse ano, a produção triplicou. A comunidade se preparou, fizemos muita coisa nessa linha para garantir um estoque para que se tivesse que ter uma crise, uma situação desabastecimento local, nossa comunidade estaria segura para passar os tempos necessários”, acrescentou.
Live solidária
No mês de julho, a Associação Apiwtxa e Instituto Yorenka Tasorentsia iniciaram uma campanha para ajudar os povos da floresta durante a pandemia da Covid-19. O objetivo é arrecadar R$ 1 milhão para ajudar 1,8 mil famílias. O projeto foi batizado como “Ashaninka Pelos Povos da Floresta”.
As doações iniciaram em uma live realizada com líderes indígenas do povo Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia.
Através da ação, foram distribuídos kits de cesta básica, mas também equipamentos e produtos como ferramentas de plantio e materiais de pesca para que os moradores da floresta fortalecesse a produção local. Segundo dados da Associação Apiwtxa, foram realizadas quatro etapas da campanha que ajuda indígenas das comunidades Breu, Bajé, Tejo e Amônia.
A campanha já arrecadou mais de R$ 550 mil de aproximadamente três mil doadores de 17 países. Foram distribuídos 1,2 mil kits e 42 toneladas de produtos arrecadados.
Francisco Piyãko revelou que essa foi a forma que os Ashanikas encontraram para ajudar outros povos a sobreviverem dentro das aldeias e não saírem para se contaminarem. As doações continuam abertas e podem ser feitas pelo site da comunidade.
“Fizemos a campanha para ajudar o nosso entorno, que as pessoas que não tinham esse grau de organização, a não se exporem muito e a gente queria que se fortalecesse para não circularem na cidade. Fizemos a live e conseguimos atender mais de 1,2 mil famílias, a campanha está aberta e estamos atendendo. Era uma necessidade nossa, mas a gente via que nosso entorno estava precisando disso”, complementou.
Francisco Piyãko é filho do cacique e patriarca da família Piyãko, Antônio Piyãko. A família é composta por sete filhos, sendo cinco homens e duas mulheres. Francisco é irmão também de Isaac Piyãko, único candidato indígena eleito prefeito do Acre. Isaac segue pelo segundo mandado como prefeito de Marechal Thaumaturgo.
"Nossos cuidados funcionaram muito bem. Logo que chegou aquele impacto da pandemia, demos uma recuada, mas temos vivido bem. O povo Ashaninka tem vivido momentos difíceis ao longo da sua história, tivemos outras doenças no passado. Isso é bem presente ainda hoje e funcionou muito bem. Usamos das nossas medicinais da floresta para curar qualquer ameaça de doenças também", concluiu.