Com a população vivendo na insegurança econômica, a cobrança da taxa do lixo está causando divergência entre políticos desde o início de novembro, quando o assunto voltou a ser discutido na Câmara Municipal de Cuiabá após meses parada. A principal questão é acerca da obrigatoriedade ou não de cobrar uma taxa pelo serviço. A previsão consta no Marco Regulatório do Saneamento Básico, já em vigência em todo o território nacional. O jornal Estadão Mato Grosso entrevistou especialistas sobre o assunto.
Na interpretação do advogado, ex-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais e membro efetivo da Comissão de Direito Penal e Processo Penal, ambas da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Mato Grosso (OAB-MT), Carlos Perlin, a cobrança é facultativa e não pode se limitar à coleta dos resíduos sólidos.
"A lei coloca que a taxa tem que acompanhar, além da coleta, também a destinação. Então poderíamos entender que só a coleta do lixo não justifica a taxa, teria que ter a coleta mais o manejo e reciclagem do lixo. É como se tivesse prestando meio serviço e querendo cobrar cheio” explica.
A explicação de Perlin é semelhante a do vereador pela capital Diego Guimarães (Republicanos), que também é mestre em Direito e especialista em Auditoria Contábil e Tributária. O parlamentar pontua que o Marco Regulatório obriga a organização do serviço e não a taxação.
“A obrigatoriedade que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos estabelece é que se regulamente o que será investido e da onde vai vir esse dinheiro. Cuiabá já gasta ao ano mais de R$ 40 milhões com coleta de lixo e destinação. Se esse dinheiro for bem investido, é possível manter a coleta de lixo”, explicou.
Diego é um dos parlamentares da oposição que tem se colocado contra a aprovação do projeto, que vai impactar diretamente o bolso do cuiabano.
Carlos Perlin vai mais além. Ele pontua que o prefeito não pode ser responsabilizado se não criar a taxa porque Cuiabá já tem a prestação do serviço. Portanto, ele não deixa de arrecadar um valor importante ao Município.
“Considerando que hoje esse serviço é prestado com verba já destinada a tanto, então o estudo de impacto vai considerar que essa despesa já está coberta por esse recurso, o que não geraria responsabilidade ao prefeito. Afinal, ele não deixou de arrecadar valor importante ao Município, porque o serviço já é prestado [...] ao meu ver, não é obrigatório porque no caso de Cuiabá, já se tem essa verba. O que a lei impõe é que haja um orçamento e no caso de Cuiabá, já existe”, explicou.
O projeto é de autoria do Poder Executivo, cujo prefeito Emanuel Pinheiro (MDB) também é especialista em Direito Constitucional e professor universitário. Ele tem entendimento diferente de Diego Guimarães e Carlos Perlin.
Para ele, o Marco Regulatório fixa a taxa como obrigatória a todos os municípios brasileiros. O assunto tem causado embates ferrenhos entre os apoiadores de Emanuel e os vereadores de oposição, como Dilemário Alencar (Podemos), Diego Guimarães, e Maysa Leão (Republicanos).
Mas a proposta encaminhada não atende a todas as exigências do Marco Regulatório, que estipula a criação de um aterro sanitário com o sistema correto para receber e destinar o lixo doméstico. Faltando poucos dias para o encerramento do ano, é impossível para a Prefeitura construir tal espaço a tempo de inaugurá-lo no começo de 2023 para justificar a cobrança da nova taxa já para o ano que vem. Atualmente, o lixo coletado em Cuiabá é destinado no lixão do Coxipó do Ouro.
Nas últimas semanas, Emanuel tem dito que está sendo pressionado pelo Ministério Público do Estado (MP-MT) para implementar a taxa em Cuiabá. O receio é que o órgão acione a Justiça por possível omissão acerca do assunto.
Carlos Perlin também discorda dessa possível penalização, por causa do pacto federativo.
"Diferente da Constituição, que pode estabelecer obrigações para todos os entes como Municípios, Estados e Governo Federal, uma lei federal... ou seja, o Governo Federal, estabelecendo obrigações apenas aos Municípios, poderia talvez caracterizar uma violação de um pacto federativo. Não há uma certa hierarquia entre eles, eles atuam de forma coordenada, mas não um mandando no outro, então é um pouco duvidosa essa situação de o Governo Federal ficar estabelecendo regras, objetivos, marcos e obrigações para cumprimento dos municípios”, arremata.
MARCO REGULATÓRIO
O Estadão Mato Grosso também ouviu o professor de Engenharia Ambiental da Unic, Durval Rezende, para ele explicar a essência do Marco Regulatório. De acordo com ele, o surgimento da lei teve por objetivo organizar a gestão de resíduos sólidos que, se não tratado, pode contaminar o solo, o ar, a água, e o lençol freático.
“O lixo é destinado atualmente no lixão do Coxipó do Ouro, que um dia já teve a estrutura de aterro sanitário, mas hoje ele não tem mais a estrutura de um projeto específico como ele deve ser feito. E é isso que o governo cobra, então, dentro dessa questão da taxação, não há especificamente a coleta, também tem a ver com a organização de um aterro porque o único aterro sanitário que temos aqui é o particular do Pedra 90, só que é pago depositar o lixo lá”, explicou.
O professor ainda explica que a falta de gestão desses resíduos pode tirar recursos federais dos Municípios. Segundo ele, um acordo firmado com o Governo Federal previa a obrigatoriedade dessa organização, com riscos de corte de subsídios em caso de descumprimento.
A Lei Federal 14.026/2020, o Marco Regulatório do Saneamento Básico, trata da universalização dos serviços prestados, como tratamento e distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e coleta e destinação correta dos resíduos sólidos. Até 2033, os serviços devem garantir o atendimento de 99% da população com água potável e 90% da população com coleta e tratamento de esgoto.
A PROPOSTA
Caso a taxa do lixo seja implementada em Cuiabá, a população deverá ser cobrada por meio da fatura de água. O projeto prevê isenção a todas as residências cujo consumo mensal de água não ultrapasse os 10 m³, 10.000 litros. Ainda não há previsão acerca do valor a ser imposto à população, mas ele deverá considerar, além do consumo, o bairro, o tamanho da residência e a frequência de coleta do lixo.
A proposta já havia sido encaminhada pelo prefeito em dezembro do ano passado, mas foi barrada pelos vereadores. Emanuel Pinheiro alega que a proposta atende às determinações do Marco Regulatório.
Cuiabá, além de não ter um aterro sanitário público, também não tem coleta seletiva universalizada, o que impacta ainda mais no meio ambiente e dificulta o trabalho de catadores e cooperativas de reciclados que atuam no lixão.
De acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), cada brasileiro produz mais de 1 kg de lixo por dia: 379,2 kg. Essa quantidade absurda de resíduos tem pouca destinação correta no país e tem sido cada vez mais pauta de discussão, não só por ambientalistas, mas por especialistas de outras áreas, que apontam para os riscos que isso já pode estar causando em grande escala.
A proposta de nova taxa tem forte rejeição não apenas por ser uma cobrança a mais no bolso do contribuinte, mas devido ao momento que ela surge. Em meio a aumento do IPTU, inflação, desemprego, crise econômica, estes últimos agravados pela pandemia, qualquer valor retirado do orçamento doméstico pode significar o corte de insumos básicos da cesta básica, como o óleo, o leite e o ovo.